04 março 2024

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE O MUSEU MUNICIPAL - I / Jornal BADALADAS, 23 Fevereiro 2024

 

PATRIMÓNIOS

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO 

SOBRE O MUSEU MUNICIPAL – I

Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação

do Património Cultural de Torres Vedras

 

Publicaremos, ao longo deste ano de 2024, um conjunto de artigos dedicados ao Museu Municipal Leonel Trindade de Torres Vedras. É nossa intenção contribuir construtivamente para um debate necessário sobre este importante equipamento cultural.

 

Foi em 1929 – há 95 anos! – que a Câmara Municipal de Torres Vedras aprovou o primeiro regulamento para o futuro Museu Municipal, o qual viria a ser inaugurado em 28 de Julho desse ano, na sala da Irmandade dos Clérigos Pobres, junto à igreja de S. Pedro. Concretizava-se, assim, o repto lançado por Júlio Vieira, em 1925, nas páginas do semanário A Nossa Terra, com o artigo intitulado “Um alvitre”, no qual propunha “a criação de um Museu Regional e Arte e Arqueologia”. Para a sua localização, sugeria “a portaria do antigo Convento da Graça, onde estão os azulejos do Padroeiro de Torres Vedras” ou o local onde, quatro anos depois, viria a ser instalado. Recorde-se que Júlio Vieira foi uma notável figura da Cultura torriense, da primeira metade do século XX, autor do celebrado e, ainda hoje precioso livro Torres Vedras Antiga e Moderna, publicado em 1926. Infelizmente, já não assistiu à inauguração do Museu, pois estava muito doente e veio a falecer alguns meses depois, em Janeiro de 1930. Foi o seu amigo Rafael Salinas Calado, outra figura de grande dinamismo na área cultural, que veio a ser o concretizador da ideia, aglutinando vontades e contributos de diversa proveniência, com o apoio da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, de que era presidente o Tenente Vitorino França Borges. Foi essa Comissão que deliberou entregar a Direcção do Museu ao Dr. Salinas Calado. A notícia da Gazeta de Torres, de 4 de Agosto de 1928, enumerava algumas das peças que faziam parte do acervo museológico: o bufete, oferecido pelos morgados da Maceira, onde foi assinado o pacto de capitulação de Junot, após a batalha do Vimeiro em 1808; o livro do foral de Torres Vedras, concedido por D. Manuel I em 1501; vários e valiosos artigos de arte sacra; um colecção de numismática romana, visigótica e árabe; várias peças de louça das antigas fábricas do Juncal, Bica do Sapato e Vista Alegre; e oito quadros / tábuas pintadas, do século XVI, da escola de Gregório Lopes e Grão Vasco. As várias peças de pedra, epigrafadas ou de cantarias antigas, guardavam-se, até aí, nas dependências ou no exterior da Igreja de S. Pedro.

Diga-se, a propósito, que aquela sala onde se inaugurou o Museu há 95 anos, foi objecto de uma das mais notáveis obras de engenharia feitas em Torres Vedras, nos anos 40 do século passado: como era um edifício autónomo da Igreja de S. Pedro, e estava a impedir a construção da Av. Tenente Luís de Moura, necessária para o acesso ao Mercado Municipal e à Estação da CP, a então Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais decidiu desmontá-lo  e adossá-lo à Igreja, deslocando-o cerca de vinte metros. De facto, aquela é uma pequena jóia do nosso Património que bem merecia a custosa obra.


À esquerda, sala da Irmandade dos Clérigos Pobres,

antes de ser deslocalizada (SIPA FOTO 00526126)


Salinas Calado, num texto posterior em que relatou o início do Museu, faz referência à organização de um Grupo dos Amigos do Museu, cujas cotas mensais, aliadas a um subsídio camarário, «permitiram bastantes aquisições», o que, «com as ofertas de particulares foi aumentando o recheio do pequeno museu, precursor do Grande Museu que Torres um dia pode realizar». Esta interacção entre a população e o Museu, em Torres Vedras nos anos 30 do século passado, pode ser encarada como expressão pioneira do que, muitos anos depois – em 2004 -  a Lei Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto) veio a reconhecer como um dos «Princípios da política museológica»: a participação dos cidadãos na «salvaguarda, enriquecimento e divulgação» dos museus.

Em 1944, por exiguidade do espaço, o Museu foi transferido para o antigo Hospital da Misericórdia, na R. Serpa Pinto. O constante aumento do seu espólio implicou a progressiva ampliação que, em 1970, já ocupava oito salas distribuídas pelos dois pisos, onde os espaços se organizavam de acordo com a tipologia das peças. Havia uma prevalência significativa de material arqueológico proveniente do intenso labor investigativo de Ricardo Belo e Leonel Trindade, em que se destacava o referente ao Castro do Zambujal, em articulação com uma sala dedicada à Guerra Peninsular – criada em 1955, um ano depois da construção do obelisco no Jardim da Graça –  e outras em que se observavam as peças que vinham da fundação e muitas outras entretanto adquiridas ou doadas – caso de uma importante colecção de numismática, ou emprestadas, como a de malacologia.





                                         Museu nas instalações da Misericórdia, R. Serpa Pinto

Em 1989, o Museu passou para o piso térreo do Convento da Graça, após um período de alguma espectativa alimentada por personalidades e entidades interessadas no desenvolvimento cultural da jovem cidade. Chegou-se a pensar instalar ali um Centro Cultural – expressão da época.  Recorde-se que o vetusto edifício do convento foi ocupado, desde a extinção das ordens religiosas, em 1834, e depois com a República, por múltiplas funções administrativas, algumas das quais desde finais do século XIX: Tribunal, prisão, Conservatória do Registo Civil, Tesouraria das Finanças, GNR..

Durante os primeiros anos do regime democrático, iniciado em 1974, alguns grupos e associações ali se instalaram – Cooperativa Comunicação e Cultura, Espeleo Clube, grupo de escuteiros, grupo de Cinema de Animação – que conviveram com os últimos serviços a deixar o edifício – a Junta de Freguesia de S. Pedro, alguns armazéns e serviços camarários e o aquartelamento da GNR na parte sul.

Finalmente desocupado, pôde então a Câmara Municipal realizar obras de reabilitação com a demolição de paredes e pisos que tinham sido acrescentados para os ditos serviços e assim redescobrir os interiores originais, recuperando alguns elementos arquitectónicos tapados (colunas) e devolvendo a dignidade e amplitude de algumas salas – designadamente as grandes salas do celeiro e da copa, para aí instalar o “novo” Museu Municipal.  Foi ainda desta época o derrube do muro que separava as propriedades da Paróquia e do Município, devolvendo ao claustro a sua inteireza espacial.  Mas este esforço financeiro só foi possível porque a Camara aproveitou um financiamento disponível da Administração Central para instalar o GAT – Gabinete de Apoio Técnico aos municípios no piso superior do Convento da Graça.                                             

Pôde então o Museu ser re-inaugurado em 1992, ganhando-se com isso uma maior clareza e dignidade na exposição do notável espólio museográfico torriense, com destaque para os grandes núcleos – Pré-História, Linhas de Torres e Pintura Quinhentista, a par de outras peças eloquentes do património e da história local, como o Foral Manuelino. A concepção espacial e a montagem, desafio tão difícil como estimulante, ficou a dever-se à dedicação da Dra. Isabel Luna e de Leonel Trindade Jr. A relocalização do Museu Municipal – que em 1997 passou a designar-se Museu Municipal Leonel Trindade, em homenagem ao dedicado arqueólogo torriense – constituiu um marco importante para a cultura local, numa solução plena de significado, que sintetizou num mesmo projecto dois objectivos cruciais para uma maior afirmação da identidade torriense: a reabilitação da histórica construção e a visibilidade de um espólio que constitui inalienável testemunho desta comunidade. 

 

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